Uma auditoria da Controladoria Geral da
União atinge em cheio o secretário de Saúde do Rio de Janeiro, Sérgio
Côrtes. O relatório aponta desvio de R$ 23,5 milhões em hospitais
fluminenses e a maior parte do rombo num hospital, o Into, que foi
comandado pelo próprio secretário. Leia, abaixo, a reportagem de
Leonardo Souza e Hudson Correa:
Auditoria detecta desvios de R$ 23,5 milhões em cinco hospitais do Rio
A maior fraude ocorreu quando o secretário de Saúde do Estado, Sérgio Côrtes, comandava uma das unidades
LEONARDO SOUZA E HUDSON CORREA
Em qualquer supermercado mediano no Brasil, o litro do
leite, integral ou desnatado, custa pouco mais de R$ 2. A garrafa
pequena de água mineral pode ser facilmente encontrada por menos de R$
1. Pelas regras básicas da economia, se a compra desses ou de quaisquer
outros produtos se der em grande escala, no atacado, os preços tendem a
ser menores. Mas essa lógica não necessariamente se aplica aos hospitais
federais do Rio de Janeiro, onde um esquema formado por funcionários e
donos de quatro empresas praticou fraudes em processos de concorrência
durante anos. De acordo com uma nova auditoria da Controladoria-Geral da
União (CGU) concluída em novembro, a que ÉPOCA teve acesso com
exclusividade, cinco hospitais e órgãos federais ligados à saúde no Rio
de Janeiro foram lesados em pelo menos R$ 23,5 milhões entre 2005 e o
ano passado. Mercadorias superfaturadas, serviços pagos e não prestados e
licitações de cartas marcadas estão entre os crimes detectados pela
CGU.
No meio do imbróglio está o atual secretário estadual de
Saúde do Rio de Janeiro, Sérgio Côrtes. Antes de ir para o governo,
Côrtes dirigiu por cinco anos, de 2002 a 2006, o Instituto Nacional de
Traumatologia e Ortopedia (Into). Foi no Into que se verificou a maior
fraude, de R$ 21,2 milhões. As três empresas que participaram do esquema
no Into foram contratadas na gestão de Côrtes e causaram prejuízo ao
hospital ao longo de vários anos. Uma delas, a Padre da Posse
Restaurante Ltda., chegou a ser dispensada de licitação – foi contratada
a convite da direção do hospital. A Padre da Posse forneceu ao Into
água mineral superfaturada, com sobrepreço de 219% por garrafa, de
acordo com os técnicos da CGU. Enquanto cada unidade de 600 mililitros
deveria sair por R$ 0,77, o preço cobrado do hospital foi de R$ 2,46. Ao
todo, a Padre da Posse Restaurante desviou mais de R$ 3,8 milhões do
Into ao fornecer mercadorias – além de água, outros itens de alimentação
– acima dos preços de mercado.
O maior dano ao Into foi causado pela Rufolo Empresa de
Serviços Técnicos e Construções Ltda., uma empresa cujo amplo campo de
atuação inclui fornecimento de lanches, desinsetização, abastecimento de
fio dental, manutenção predial, limpeza e conservação. Os técnicos da
Controladoria identificaram contratação de serviços sem necessidade
comprovada, serviços contratados sem a comprovação de que tenham sido
prestados e preços aprovados de acordo com as propostas encaminhadas
pela própria Rufolo, ou por outras empresas com vínculos familiares e
societários com a Rufolo. De acordo com a CGU, os prejuízos causados
pela Rufolo ao Into alcançaram R$ 16,9 milhões. Outra empresa que também
fraudou o hospital foi a Toesa. Ela cobrou valores acima do mercado na
locação de ambulâncias e veículos de passeio. O sobrepreço calculado
pela CGU, nesse caso, foi de R$ 522 mil.
O Into é um centro de referência no tratamento de doenças e
traumas ortopédicos de média e alta complexidade. Conta com um banco de
ossos e administra uma enorme fila de espera por transplantes. Apesar
de sua importância na área de saúde, não é a primeira vez que se
encontra no epicentro de fraudes. A Procuradoria da República apontara
desvios de R$ 6,4 milhões entre 1997 e 2001 e denunciara 11 pessoas por
formação de quadrilha.
Diante do quadro de corrupção, um jovem cirurgião
ortopédico assumiu o Into em 2002, com a missão de combater o esquema e
evitar novos roubos. Exatamente ele, Sérgio Côrtes, então com 37 anos.
Côrtes sofreu represálias. Foi ameaçado de morte, e seu gabinete teve de
ser vasculhado após uma ameaça de bomba. Côrtes chegou a recorrer a
proteção policial. Agora, a suspeita de fraude ronda justamente sua
gestão no Into, que ele deixou para assumir a Pasta de Saúde do Estado e
virar um dos secretários mais próximos ao governador Sérgio Cabral
(PMDB).
Em abril do ano passado, Côrtes ficou conhecido por um
motivo constrangedor. Foi divulgada uma foto em que ele aparece de
guardanapo na cabeça, com o empresário Fernando Cavendish, amigo de
Cabral e dono da construtora Delta, acusada de fraudes em contratos com o
Poder Público. Ele também foi filmado ao lado de Cavendish e Cabral num
show do U2. O deputado federal Anthony Garotinho (PR), que divulgou em
seu blog a foto e o vídeo, disse que o show ocorreu em Paris, em julho
de 2009, e que a festa do guardanapo aconteceu no restaurante de um
hotel também em Paris, dois meses depois.
Procurado para falar sobre os desvios apontados pela CGU
no Into, Côrtes afirmou, por meio de sua assessoria, que não teve acesso
ao relatório da CGU e que cabe à atual administração do Into se
manifestar sobre o assunto. Ele disse ainda que todas as contas de sua
gestão foram aprovadas pelo Tribunal de Contas da União.
Todos os anos, a CGU realiza operações especiais e
auditorias em prestações de contas de gestores federais. Em abril de
2011, ela iniciou uma auditoria especial em hospitais federais no Rio de
Janeiro, com o objetivo de examinar contratos de serviços terceirizados
em diversas áreas, como locação de mão de obra, alimentação, serviços
de engenharia e aluguel de equipamentos. No curso dessas análises, a CGU
já detectara irregularidades em contratos fechados pelas empresas Padre
da Posse, Rufolo, Toesa e uma quarta companhia, a Locanty Comércio e
Serviços Ltda.
Em março do ano passado, o programa Fantástico,
da TV Globo, denunciou um esquema de corrupção montado justamente por
essas quatro empresas para tentar fraudar as licitações do hospital de
pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante dois meses,
um repórter gravou funcionários e donos dessas empresas oferecendo
propina para vencer as concorrências. Em troca, diziam que forneceriam
mercadorias e serviços a preços superfaturados. Em muitos casos, a
valores muito acima dos preços de mercado, com margem para pagar a
propina e ainda sobrar dinheiro para os corruptores.
Com base nessa denúncia, a Delegacia de Repressão a Crimes
Financeiros e Desvio de Recursos Públicos (Delefin) da Polícia Federal
no Rio de Janeiro, chefiada pelo delegado Victor Poubel, abriu um
inquérito para investigar todos os contratos dessas quatro empresas com
órgãos federais no Rio. Logo na fase inicial, foram ouvidas pela Delefin
mais de 50 pessoas, entre os donos das empresas envolvidas no esquema e
dirigentes dos hospitais e órgãos federais. Partiu também da Delefin o
pedido para que a CGU realizasse uma nova auditoria em todos os
contratos das quatro empresas com o governo federal. Foi a partir dessa
solicitação da Delefin que a CGU concluiu o relatório a que ÉPOCA teve
acesso, com a descrição das fraudes.
Apesar de tantos elementos levantados pela CGU, a equipe
da Delefin está com as mãos atadas há quase um ano. O pedido de
renovação do inquérito está parado desde abril do ano passado na 10ª
Vara Federal Criminal do Rio, cujo titular é o juiz Marcelo Luzio
Marques Araujo. Sem essa autorização da Justiça, a PF não pode dar
continuidade às investigações nem rastrear eventuais pagamentos de
propina aos servidores públicos.
Se a PF está impedida de agir na esfera criminal, na área
administrativa a CGU fez seu trabalho. O caso que mais chamou a atenção
dos técnicos da Controladoria foi do Into, pelos valores envolvidos e
pela frequência das fraudes. Mas os trambiques praticados em vários
outros hospitais da rede federal também mereceram destaque no relatório
da CGU. Um deles ocorreu no Hospital Federal do Andaraí (HFA). Foi lá
que se verificou o abuso no preço do leite descrito no início desta
reportagem. A empresa Padre da Posse, a mesma que forneceu água
superfaturada ao Into, cobrou do HFA R$ 5,52 pelo litro do leite, mais
que o dobro do valor unitário de referência estabelecido pela CGU, de R$
2,36.
O relatório da CGU chegou em janeiro ao Ministério da
Saúde e está na mesa do diretor do Departamento Nacional de Auditoria,
Adalberto Fulgêncio. Ele disse que aprofundará o levantamento sobre as
fraudes e, numa segunda etapa, enviará fiscais aos hospitais e ao Into.
Essa equipe de campo identificará, consultando toda a papelada das
licitações, os funcionários públicos responsáveis pelo prejuízo ao
Erário. “Os maus pagadores, que geralmente são servidores públicos,
serão punidos, e recuperaremos o dinheiro público recebido pelas
empresas. No caso do Hospital do Andaraí, já evitamos o pagamento”,
afirmou.
ÉPOCA falou com o empresário Adolfo Maia, dono da Padre da
Posse Restaurante. Ele disse que, no preço da garrafinha de água e no
litro do leite, estão incluídas as despesas com serviços para
distribuí-los aos hospitais. Ele negou fraudes. O advogado Fábio de
Carvalho Couto, que defende a Rufolo na área criminal, afirma que não há
provas materiais de que a empresa tenha fraudado licitações ou
corrompido funcionários públicos. Os responsáveis por Toesa e Locanty
não telefonaram de volta.
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